domingo, abril 30, 2006

Que me deixasse disso, que as marionetas dos dias decalcados, a puxar corpos cheios de costumes são coisas minhas, que o tempo lisinho é coisa que não há por fora. Que isso meu. Disse-me isso.
Está hoje um dia repetido.
E desmanchou-se logo. E eu a dar-lhe atenção, como se os bocados de nós, aqueles que nos empurram à parede, puxam pelo colarinho, ameaçam com uma mão cheia de veias que a pele não tem força para baixar e atiram um não é nada disso!, devessem ser ouvidos. Devem? Talvez, mas há a minha teimosia de saber o pouco tempo que ficam. Desmanchou-se logo, porque já a porta para trás, a decisão do café e a rua corcunda de tudo nos seus lugares, de uma urgência de tudo a postos.
Se se mantivesse inteiro, ter-me-ia explicado, talvez, que o que se não diz, que o vermo-nos o avesso, que o remoinho das palavras de mão na boca são desassossegos da escrita.
Que me deixasse disso.
Mas dizia-te que está um dia vulgar, as casas encaixadas, as pessoas ao mesmo ritmo e, se for altura de loiça na máquina, há-de descer o tronco de mão atrás. Desmanchou-se.
Se te aparecer um bocado desses, com veias de fúria de só é dentro de ti!, chega-lhe o ouvido aí um centímetro de tempo, deixa-o estar. Sempre é um aconchego a um instante como se houvesse uma condenação à calma. À ilusão.

sábado, abril 29, 2006

Da próxima vez, escrevo a sério. Escrevo mesmo.Um texto a transbordar de palavras inteiras. Sem que a vida me interrompa, é que estou farta de tentar colar todos os pedaços do que não digo sempre que uma porta me estilhaça o silêncio. De modo que não sei se chego desta vez. Como nunca, de resto. É por isso que a tal senhora não te ouviria. A ilusão é estridente. Ou a lucidez, não sei bem. Como todas as vozes de nós, os néons privados e obsessivos dos dias em claro. Não sei se te disse que quase prefiro as noites. Mesmo o tumulto vazio dessas horas, que nunca transborda. Uma espécie de sangria adiada da alma, uma coisa assim. O preço da invivência, digo-me (do viver para dentro, devia vir nos bons dicionários). Bem conheço o chinfrim de todas as palavras não ditas. Será que a tal senhora adormece melhor? Quem espera convictamente quer chegar à margem clara da manhã, garanto-te, quase com a mesma certeza com que te afianço que as portas espezinham as palavras. E com que tento dizer que gostaria era de me libertar deste guizo interior que me sufoca. É que nem sempre gosto de dar por mim.

terça-feira, abril 25, 2006

Um verbo sozinho. Esperar. Tens mesmo razão.
E do que ouvi vinha isso, esse empenho ao vazio. Mesmo entre o agudo dos pires e das chávenas a deixarem-se cair na máquina de as limpar até ao íntimo e o senhor Artur (por meio da história) aqui têm tudo em condições, bem servidos, com uma descida de tronco de mão atrás e à velocidade com que me passam as noites de não dormir. Mas a sério que me chegou esse empenho de que falavas (mas não o sabia dizer) mesmo entre a forma irritante com que nos entra o som de pratos a baterem depois de insónias.
Mas dizias que o regresso traz outro. E se lhe batesse à porta? À porta da senhora que me ficou entre os trocos? Digo eu, eu bater-lhe à porta. Que quando voltar é outro, que ponha só um prato, que os dias assim, com esforços por encolhê-los ao máximo para passarem a ser outros, são forma de se passar pela vida sem fazer barulho. Ou deixá-la a tecer farrapos de nada, de que falavas, no seu tecido? É forma de se estar.
Um verbo sozinho, de facto.
Eu bater-lhe à porta, dizia. Há ideias que nos vêm ao mesmo tempo que as enxotamos. Eu. Como se fosse costume fazer barulho. Às vezes, quando a lucidez não arreda pé, quando a aflição do silêncio, como dizias, tenho a certeza de que hei-de passar assim. Que, por mim, tenho o tempo todo bem polido, lisinho, direitinho. Igual. Morto, dirias, talvez. Hás-de ver que não faço barulho. Palavra. Há pessoas que vêm sem guizo.

Também nunca sei se o mundo nos adormece ou acorda a memória. O mundo é tudo o que é outro, claro. Nunca sei se é um voo de mim ou se me deixa mais comigo, emaranhada no meu próprio ninho. Mas também te digo que as palavras dos outros são normalmente ditas com a minha voz. Pode parecer estranho, mas é verdade, como é verdade que quase me aflige o silêncio do frigorífico. Os silêncios, em geral. E os ponteiros parados também são palavras quietas. Se bem que, penso-o muitas vezes, os corpos sem alma são de confiança. Mais tarde ou mais cedo, o frigorífico sempre diz alguma coisa. E, quando partir, há-de, inevitavelmente, regressar, ou outro por ele (é sempre outro que regressa, como se sabe), para retomar a sua voz na casa. Mas, como dizia, porque era isto que dizia, esperar é um verbo triste, um verbo sozinho. A vida empenhada ao vazio. E se também teço os dias para desfazê-los depois, é porque quero, insidiosamente, matar o Tempo. Mas suponho que toda a gente viva em estado de esperança, mais ou menos dissimulada, que em cada um haja farrapos de nada que teimosamente entrelaça num tecido ingénuo. É que, se repararmos bem, o zumbido do frigorífico parece mesmo o mar na praia de Ítaca, não é?

sexta-feira, abril 21, 2006

Escrevo-te porque uma história de manhã, logo com o café. Por isso e porque uma tarde cheia de barulhinhos a pesarem-me, movimentos arrastados, cansados, ao ritmo com que me escorregam os ponteiros.
Uma história que ouvi ao senhor Artur. Não que ma tenha contado a mim, ando sempre com os olhos demasiado embrulhados no chão, nas chávenas, nos balcões, na carteira, para me andarem a despejar histórias. Dizia que há histórias assim. Esperas calmas e permanentes. Que um dia a despedida com o regresso mesmo encostadinho, despedida de vais ver que passa depressa, daqui a nada estou cá. E que até hoje. E que a senhora… (ficou-me o nome entre os trocos) com a mesa pronta. Histórias assim, acreditas? Esperas calmas e permanentes? Que por volta das sete dois pratos e os talheres todos.
E anda-me a tarde cheia de barulhinhos. O frigorífico, a espaços teimosos, murmura-me o incómodo de uma vida cheia de costumes. Palavra que é difícil aguentá-lo. Aguentar o frigorífico, pássaros de fim de tarde e histórias assim. Acreditas?