sábado, agosto 26, 2006

Primeiro, é só o corpo que regressa nos gestos mecânicos. Abre as portas na direcção certa. Acende as luzes de cor. Contorna os objectos. Depois, pousamos também lentamente em nós. E, no hall, a memória começa a espreitar da bagagem. Depois, voltamos a passar a vida a esbarrar connosco. Subitamente, olhamos, e lá estamos. Inteiros. Quando viajamos, temos sempre a ilusão de que regressamos diferentes, de que somos (ou “estamos”, como nos dizem) outros (há anos que sonho “estar outra”...). Mas quando volto a casa, habituo-me instantaneamente à minha claridade, à pronúncia difícil do que sempre fui. Não deve ser mau sairmos de nós, partir sem nos levar ou trazer na mala. Extraviarmo-nos. Perdia já todos os meus pertences, sobretudo a memória, que é o que, irremediavelmente, mais nos pertence, a que o sol nos cola à pele na praia onde fomos de férias “para esquecer”. E quando o Outono assoma no arrepio da tarde, apetece-me ser personagem de romance de cordel: aninhar-me num cesto e deixar-me à porta de alguém, um bilhete na dobra da manta: “Cuida de mim”.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Que fosse à velocidade com que me passa uma noite de insónias. Só isso, que quando voltasse fosse assim, devagar, a pôr os pés no chão a medo. Achas que é possível?
A voz distinta e rouca do abandono vem direitinha, tal qual está quando a empurramos como quem afasta migalhas na toalha, os dedos a repetirem-se, a ver se um espaço sem chegadas abruptas do que já foi, porque apenas quase tudo se toma amargo, como dizias.
Mas o que te queria contar era que hoje ia com passos de ritmo de estou cheia de pressa, a contornar carros, gente, sacos, tudo perfeito, no encaixe certo, quando me pára um senhor a travar o passo já pensado, de lábios esticadinhos para os lados.
Dizia-te sem estremecer, sem ser de repente. Achas que é possível? Que a memória pode vir a arrastar, mas sem fazer ranger as tábuas?
E fiz-lhe o mesmo. Ao senhor. E deu-me jeito. Porque tinha já o olho a fugir para o fim da rua e, quando começo assim, desfaço tudo, fico convicta de não tenho pressa, a carregar as palavras que se sabe que existem, de que falavas, como se estivesse a escrever e a alma cada vez mais lá. Assim, sempre o fim da pressa mais ao longe, com o sorriso pelo meio.
Mas é de repente, quando se chega, quando se pára sem ninguém à frente. Vozes, cheiros. Abrupta. Intacta. Como se não consegue ouvir as palavras. A bater os pés, a memória.
Por isso, deu-me jeito.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Às voltas, às voltas, a remexer as palavras, a ver se as dissolvo num texto. Que o café aprende-se a tomar amargo (aprende-se a tomar quase tudo amargo, talvez), mas os textos sabem-me sempre mal. Por mais palavras que lhes deite. Se calhar, é porque, mesmo que se tenha mil cuidados, destingimo-nos no que escrevemos. Detestaria pensar que isso é verdade, e que cada texto nos desbota a alma. Mas, como sabes, tenho sempre dificuldade em ouvir-me. Em ouvir. Em fechar as torneiras que abafam as palavras que eu sei que existem. Em tirar as luvas de borracha e deixar a loiça suja. Por uma palavra intacta. Por uma melodia completa. Até porque tenho a certeza de que é possível ouvir por dentro. Como, há dias, uma voz cambaleante gritava às gaivotas na avenida marginal, gritava-lhes pedacinhos de pão, acho que à procura de um interlocutor de asas. À mais afoita, lançou-lhe com o pão um “Estás triste? Os teus pais deixaram-te?”. E garanto-te que ouvi. Tive de fechar a complacência dos sorrisos de água dos circunstantes. Mas ouvi
(ou ouvi-me): a voz distinta e rouca do abandono - por entre os salpicos do detergente de loiça.