domingo, setembro 24, 2006

E temos de nos vestir de nós, à pressa, a roupa desbotada de todos os dias. A roupa que mal nos pertence, como uma farda incómoda. E a verdade é que, às vezes, mal me lembro de mim. Recito-me de cor como uma melopeia, sem me ouvir. Vou-me desvanecendo pelo caminho. Deixo o sorriso ali, certos gestos mais além, uma canção de que gostava perdida numa gaveta. Esqueço-me de me procurar. Esqueço-me. Deixo-me em casa. Deixo-me em qualquer lado, como um guarda-chuva. E nunca sei que responder quando me perguntam o que é feito de mim. O que é feito de todos nós? O que é feito do que somos feitos?
Dizia-te que voltei, no outro dia. Que achava que sim. De uma longa migração no estrangeiro do que mais sou. E, às vezes, queria mesmo que sim. Queria virar-me subitamente e ver-me lá, como antes. E chamo muitas vezes por mim. Pela que fui. Ou pela que julgo ter sido. Mas mais vezes pela que não consegui ser. Pela pessoa que sei que seria. Toda a gente era para ser outra, como se sabe.
De qualquer modo, se me vires, por exemplo, numa carta por enviar que deixei dobrada num livro que te tenha emprestado, devolve-me. Alisa os vincos e os cantos dobrados (sabes como detesto cantos dobrados) e devolve-me. Tenho-me feito muita falta.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Como quando às vezes se dorme, de um dormir de se estar sem membros, sem corpo, sem nada que nos pertença, os olhos em linha, de pálpebras subidas sem vacilar. Nós extraviados, como dizias.
Eu extraviada, coisa que às vezes até dura, mas se alguém ficas?, a interromper-me, volto num tempo que nem dá para contar, uma espécie de toque incómodo não sei bem onde, porque o regresso ao que somos levanta sempre o queixo um bocadinho e, sem voz, bate-nos com um o que é? perante o nosso espanto de voltarmos.
Mas às vezes dura, não é mesmo nada, nem outras vidas, nem outros olhos a desviarem-se a medo, nem outras angústias. Só os olhos num ponto mínimo, penduradinhos, sem desvios, como ficam para sempre nas fotografias. Só se sai, mais nada.
Depois o ficas? e o queixo de o que é? como se não devêssemos ficar espantados de voltarmos, como se o levantar-me para não ficar devesse ser natural, uma transposição simples.
Não, não, mentia, não sei se o ponto é mínimo, não o vejo, só fico assim, não é mesmo nada, nem outras vidas, nem outras angústias, nem outras solidões. Ficas?