Às voltas, às voltas, a remexer as palavras, a ver se as dissolvo num texto. Que o café aprende-se a tomar amargo (aprende-se a tomar quase tudo amargo, talvez), mas os textos sabem-me sempre mal. Por mais palavras que lhes deite. Se calhar, é porque, mesmo que se tenha mil cuidados, destingimo-nos no que escrevemos. Detestaria pensar que isso é verdade, e que cada texto nos desbota a alma. Mas, como sabes, tenho sempre dificuldade em ouvir-me. Em ouvir. Em fechar as torneiras que abafam as palavras que eu sei que existem. Em tirar as luvas de borracha e deixar a loiça suja. Por uma palavra intacta. Por uma melodia completa. Até porque tenho a certeza de que é possível ouvir por dentro. Como, há dias, uma voz cambaleante gritava às gaivotas na avenida marginal, gritava-lhes pedacinhos de pão, acho que à procura de um interlocutor de asas. À mais afoita, lançou-lhe com o pão um “Estás triste? Os teus pais deixaram-te?”. E garanto-te que ouvi. Tive de fechar a complacência dos sorrisos de água dos circunstantes. Mas ouvi
(ou ouvi-me): a voz distinta e rouca do abandono - por entre os salpicos do detergente de loiça.
(ou ouvi-me): a voz distinta e rouca do abandono - por entre os salpicos do detergente de loiça.
13 comentários:
A extraordinária capacidade de ouvir da margarida faz-nos pensar num dos significados de sentir. Se a visão esteve sempre associada ao entender, à razão, a audição esteve sempre ligada à emoção. Basta pensar na música...
Bem, Mito, nem sei que te responda, vou só disfarçar o embaraço e dizer que sempre achei que ouvir é algo difícil, pressupõe esse estado de graça que é a sintonia, quase impossível de alcançar.
Só te descobri agora, Margarida, porque foste ao meu espaço e deixaste lá um comentário. Ainda bem que o fizeste porque, graças a isso, tive oportunidade de te retribuir a visita e constatar que gosto de te ler. Já não escapas a fazer parte das minhas rondas assíduas! :)
Parabéns pela tua escrita e um beijinho.
Destinguimo-nos no que escrevemos e no que sentimos...
estou por cá.
Obrigada, Maria e Celeman, pela visita e pelas palavras. Foi um privilégio descobrir-vos.
É isso mesmo de que não consigo deixar de falar - "um espaço de entendimento anterior às palavaras". Obrigada por ouvires tão bem.
Beijinhos!
Passei e entrei. Li não um mas vários textos e reflecti... É uma escrita no feminino que traduz tanto do que somos...
Obrigada!
Um beijo às duas, Lu
Obrigada, em nome das duas pelas tuas palavras tão generosas. É bom saber que somos lidas por pessoas como tu.
Beijinhos!
Também me sinto bem nos seus textos
Obrigada pelas palavras, Firmina, e retribuo-as relativamente aos seus textos...
É simplesmente deliciosa a forma que simples palavras ganham quando escitas para além da nossa mais profunda forma de sentir. Gostei muito destas "Muito bem traçadas linhas" Foi um prazer...
e também é deliciosa a maneira como as pessoas,atravésdas palavras, se vão metendo umas nas outras
Igualmente, Paulo, obrigada por nos deixares também algumas dessas palavras.
É um conceito bonito, Firmina,ainda que haja almas difíceis de tocar. A solidão, às vezes, é impermeável.
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