quarta-feira, novembro 01, 2006

É que as coisas nunca mais são as mesmas. Nunca mais. Por muito que se procure ajeitá-lo, o vestido já está fora de moda, compreendes? E por muito que tente, aquela nódoa de nada não sai. E os olhos caem-me sempre nela sem querer. Apuro-os, fecho-os, portanto, a ver se vejo como antes, a ver se me vejo como antes, mas a manchazinha a alastrar cada vez mais, a cobrir-me toda. Apetece guardar depressa o vestido. Desistir de o usar, de o ver sequer. É que as coisas nunca mais são as mesmas. Ainda aliso o cabelo, ponho o melhor sorriso e abro a porta. Ainda penso numa frase antiga que surtia efeito... como é que era? Aquela que se multiplicava quase sempre no mesmo diálogo. Que trazia com segurança os mesmos gestos familiares. Uma espécie de senha. Mas calo-me, calamo-nos, a pressentir que nos traímos em palavras, a perceber que escorregámos para fora das sílabas do que diríamos se não estivéssemos tão aqui. Se eu de antes não fosse também de agora. Se não tivesse havido entretanto. Se conseguisse a pureza de viver sem recordar. Sem saber sempre o fim. É que sei quase sempre o fim. Mas procuro, na voz que regressou, a voz de sempre. E só, às vezes, certas palavras. O presente a desvanecer-nos. E eu a ver se acerto, desta feita. Se digo tudo, se digo tudo bem. Se faço exactamente o que se espera. O que teria feito. É que a culpa é sempre minha. Atrapalho-me. Balbucio disparates. A mão a mal esconder a nódoa. A ver se me imito totalmente, se acompanho os passos que se aproximam, que se hão-de afastar depois. Mas eu em silêncio, a assaltar as palavras, a tentar ouvir um estalido, a ver se consigo a combinação perfeita. Eu a ler-me nos olhos que me lêem, a mancha a inundar-me. Eu sempre a pedir Não vás... com outras letras.

18 comentários:

Anónimo disse...

Dizes tão bem esta coisa da antecipação, de saber de cor os gestos e as palavras que.talvez. Pemanecemos comos espectadores dos nossos próprios actos, sem caber na vontade que temos, sem assistir ao que gostaríamos de ser. Mas é possível a surpresa, é sempre possível resgatarmo-nos na esquina. Cat Power ficou perfeito.um beijo

Margarida disse...

Obrigada pela leitura, Marta. É mesmo como dizes, oscilamos entre espectadores e actores de nós próprios. E, muitas vezes, (julgamos que) sabemos as próximas cenas e o desfecho da peça. E, mais vezes ainda, acreditamos que, com muita sorte, conseguimos alterar o guião.
Beijinhos!

Clarissa Felipe disse...

Às vezes eu acho que refazer a mesma cena me dará uma chance de mudar o final, assim mesmo de improviso. Talvez sem perceber que a cena já foi escrita, e meu papel alí já se repete. Não desistir de certas coisas é um defeito que me persegue.

Adorei o texto. Beijos.

Unknown disse...

Não que a 'nódoa' seja importante, que alguém vá reparar nela. A 'nódoazita' é a apenas o pretexto, a defesa mental que nos resguarda daquilo que realmente não queremos que aconteça. É apenas uma ideia, uma alento que se tem mas não se quer de facto como contexto nem desfecho. Apenas o pretexto, sim, o pretexto chega bem :)

Anónimo disse...

e eu a ler-te nos olhos que te lêem, a imitar-te a mancha e a atrapalhação, a ter a mão também pronta a pedir que fique, na culpa, na voz, no fim, no silêncio...

Margarida disse...

"Não desistir de certas coisas é um defeito que me persegue."

Gostei. E não é impossível mudar o final, até porque nenhuma cena é completamente "repetível". Bem tentamos vivê-la uma vez mais, mas será sempre em vão. (In)felizmente. Mas enquanto estivermos em palco, podemos, a qualquer momento, improvisar.

Beijinho até aí.


Muito interessante a tua leitura blahblahblah. E, de facto, aproximei-me para ouvir melhor e admito que tens razão. Não foi nisso que pensei, mas também foi isso que disse. A nódoa podia representar o nosso desejo de aceitação integral,ela lembra-nos que só um olhar inteiro valerá a pena.

E eu a pensar que isso de nos lerem os textos também atrapalha, Nuno,como se nos lessem os olhos. Mesmo sendo isso que se quer, essa espécie de confluência.

celso serra disse...

Na verdade, por mais que se tente, há coisas que não mais se pode ajeitar...

Unknown disse...

"Não foi nisso que pensei, mas também foi isso que disse".

Não foi nisso que pensei, mas também foi isso que disse.

Não foi nisso que pensei, mas também foi isso que disse.

Look into my eyes [and my body language] and read what I am not saying for my eyes [and my body] speak louder than my mouth will ever shout :)

Margarida disse...

Pois é, Celeman, as nódoas dos "entretantos" não se podem apagar. Ou dito de outra forma, "...always the years between us, always the years, always the love. Always the hours."


Obrigada pelo comentário, blahblahblah, mas não posso responder, prometi à Júlia que não falava mais sobre (in)comunicação. :)

Unknown disse...

Está bem Margarida. Ainda não percebi é porque é que o copy/paste apareceu em triplicado no comentário. Seráa um sinal?? :p

Unknown disse...

E que tal que Oxi action cor de rosa? Aqui em casa faz maravilhas pelas nódoas mais dificeis :)

Quarto do Tempo disse...

É pior não saber desistir das coisas certas. Como sempre...

Margarida disse...

Desistir, Quarto do Tempo, talvez seja uma aprendizagem difícil. Sabe sempre a capitulação. Às vezes, é uma vitória nossa. Outras,sobre nós próprios...

AW disse...

estes textos fazem-me chorar, lágrimas que caiem dentro de mim, são palavras que eu poderia dizer, se tivesse talento, que sinto escritas como se fossem para mim...Se não tivesse havido entretanto ... seria tudo tão diferente

Margarida disse...

É uma sensação estranha esta, a de as nossas palavras "caírem" dentro dos outros. Como nunca fui de mostrar o que escrevo - ou de escerever, sequer, isto é, de escrever exteriromente, não sei como senti-la.
Obrigada pela visita e pelas palavras muito mais do que generosas.

Beijinho.

kelly disse...

obrigada pelas palavras com que salpicaste o thunder. leste o que escreveu o JLP como eu li e como tu, eu não estou habituada a deixar que as palavras saiam pela mão. mas sabe bem, não é? este sopro no vazio, cheio de gente:)
virei passear por estas linhas, com a calma que merecem asap!

Margarida disse...

Obrigada também pelos "salpicos" aqui, Raquel. E hei-de expor-me com muito gosto aos raios e trovões...
O sopro no vazio pode ser apelativo, mas nem sempre sabe bem, é como diz o Sérgio,"que a luz destoutra ribalta/às vezes não me seduz/às vezes não me faz falta".

Beijinho.

mitro disse...

Mas se ele não te sabe ler, é porque realmente não vale a pena.

(escreves muito bem, um íntimismo raro, poético)