quinta-feira, maio 25, 2006

A tarde de ontem foi-me de horas escorregadias, a deixar-me pernas aflitas de passos a mais a fazer peso numa cadeira de esplanada e olhos cheios daquela angústia que nos vem de não compreendermos certas partes. Ao contrário de hoje, um dia cheio de medidas.
Dizia-te que ontem, coisa de três, quatro passos ao meu lado, outras duas cadeiras – uma com um corpo e uma sem nada. Um corpo de cara já pouco lisa, de olhos amarrados à altura de uma cabeça que não havia. E, pouco depois, aparece um posso?, não percebi de onde, já de braço estendido convicto da resposta. Mas que não, que não podia, que a cadeira ocupada. E os olhos, naquele meio ponto que deve ficar entre a zanga e a tolerância, retomaram o fio.
Falavas-me de uma dança com fantasmas? Talvez isso.
A sério que eu com a cabeça em encontrões de indecisões, que, se toda eu lucidez, me tinha levantado e deitado ao de braço estendido convicto da resposta que lata! Tirar lugar a quem já estava! Mas já as mãos nos braços da cadeira e chegou-me a parte da preocupação com o entretenimento da cabeça dos outros em relação a mim. Deixei-me.
Horas de o sol já gasto, e o da cara pouco lisa de pé, a afastar um pouco a outra cadeira com mãos todas delicadeza. E via-se-lhe, entre as dobras marcadas da cara, a tarde bem pintada.
Mas deixei-me.
Se falavam? Era capaz de te jurar que ouvi murmúrios. Uma tarde de horas escorregadias.
E deve ter guardado o dia. De B A, mas bem pintado.

sábado, maio 20, 2006

Nada a fazer. Os fantasmas das palavras e das pessoas convivem-nos, assombram-nos as horas e não há qualquer fita que as isole de nós - ou que nos isole delas. Ou talvez não queiramos, de facto, ser isolados, talvez desejemos, sim, essa dança com o que foi, isto é, com o que julgamos ter sido. De forma que é fazer do vento música. Vais dizer-me que é triste fazer de B A e tens razão. Mas mais triste é matar o que já não é só porque não é. Ou porque não é o que se esperava (nada nunca é o que se espera – acho que já mo disseste. E só o desejo é perfeito, aprendo-o com todos os dias esborratados que me apresso a destruir. Com todos os dias por ser). Também te disseram, suponho, para matar o que já morreu, viver o presente e tal. Ou pensar no futuro e tal. Mas suspeito que dançar com os fantasmas é a única forma de morrerem de morte natural, como, de resto, todos os domingos (é impressão minha ou a memória chuvisca aos domingos?). É fazer do vento música, portanto. Mesmo que a morte do que foi também seja a do que fomos. Mesmo que, nessas noites sem isolamento, o passado acabe, invariavelmente, por nos pisar.

domingo, maio 14, 2006

Não te escrevi ontem porque uma noite de ar barulhento pelas fendas da janela e, com isso, um serão de vozes que já não há, de eu a vedar-lhes a entrada, mas nada. Nada mesmo. Todas cá, aos empurrões.
Não muito bem guardado, sabes, o passado.
De modo que hei-de arranjar-lhes daquela fitinha esponjosa. Não lhe sei o nome certo, tenho de andar sempre a vasculhar palavras. Mas hei-de desenrascar-me, arranje-me fita de não entrar vento, por favor, daquela de emudecer o assobio. E que os há, há, os empregados que esbanjam movimentos que não acompanho e pesados de paciência, de revirarem até aqui tem. O sorriso de agrado e eu a ver-lhe, mesmo, mesmo por detrás, a chatice da arrumação. Ele a tentar uma forma de ser só por fora e eu, que pouco levanto os olhos dos balcões, dessa vez, a teimar-lhe que o conduzir-se assim certinho, com tudo contado, não era pressa, mas forma de poder deitar-se e dormir, todo arrumadinho.
Mas falavas de não se andar de olhos tão para dentro, julgo. De haver só uma voz e do grito e de a memória andar atada a uma consciência de só nós.
Se gosto do sono de pessoas de aqui tem? Se mo emprestassem, eu de mão já à espera, deixava as fendas todas destapadas, que nunca deixasse de ser assíduo.
Mas o que te perguntava era se o passado era domingo. É? Carregado de um tempo esticado e nós a querermos que fique mas que assim não.

terça-feira, maio 09, 2006

E o melhor é fechar as portas, sempre te disse isso. É que, depois de entrarem, as pessoas não saem. Passamos o tempo a esbarrar com elas na memória, a sacudi-las das páginas dos livros, a evitar que nos pousem nas palavras. Depois é tarde. E fala-se a uma voz, na mesma. Fala-se sempre a uma voz. Tem é de se gritar, às vezes. Por isso, é que só tu. Mas não era isso que vinha dizer. Queria pedir-te para arrumares melhor as horas, guardar meticulosamente o passado, sem vincos, e lembrar que sempre ajuda saber de cor o dia seguinte e chegar a tempo à vida. Foi o que sempre me disseram. Nunca me explicaram foi como alcançar a calma sem passar pela ilusão - e isso também não sei dizer. Julgo que terá a ver com o avesso. Mas estou convencida de que alguém sabe. E provavelmente até há uma forma de se ser só por fora. Ou de não se ser só eu.