domingo, maio 14, 2006

Não te escrevi ontem porque uma noite de ar barulhento pelas fendas da janela e, com isso, um serão de vozes que já não há, de eu a vedar-lhes a entrada, mas nada. Nada mesmo. Todas cá, aos empurrões.
Não muito bem guardado, sabes, o passado.
De modo que hei-de arranjar-lhes daquela fitinha esponjosa. Não lhe sei o nome certo, tenho de andar sempre a vasculhar palavras. Mas hei-de desenrascar-me, arranje-me fita de não entrar vento, por favor, daquela de emudecer o assobio. E que os há, há, os empregados que esbanjam movimentos que não acompanho e pesados de paciência, de revirarem até aqui tem. O sorriso de agrado e eu a ver-lhe, mesmo, mesmo por detrás, a chatice da arrumação. Ele a tentar uma forma de ser só por fora e eu, que pouco levanto os olhos dos balcões, dessa vez, a teimar-lhe que o conduzir-se assim certinho, com tudo contado, não era pressa, mas forma de poder deitar-se e dormir, todo arrumadinho.
Mas falavas de não se andar de olhos tão para dentro, julgo. De haver só uma voz e do grito e de a memória andar atada a uma consciência de só nós.
Se gosto do sono de pessoas de aqui tem? Se mo emprestassem, eu de mão já à espera, deixava as fendas todas destapadas, que nunca deixasse de ser assíduo.
Mas o que te perguntava era se o passado era domingo. É? Carregado de um tempo esticado e nós a querermos que fique mas que assim não.

2 comentários:

Paulo Cunha Porto disse...

Querida Júlia:
É que nos sonos das pessoas de «aqui tem» tendemos sempre a ver o nu torpor, sem lhes (re-)conhecermos passado que conte, inquietudes que valham ou, enfim, sonhos que dignifiquem. Esquecemos talvez que, aos olhos delas, seremos sonâmbulos de "O Sr. tem?". E que na nossa busca da fita mágica que nos torne suportáveis as vozes invasoras e que condicione o sucedido, eles não encontram, por seu lado, coisa diferente da substituição dos ruídos que nos assaltam pelo ressonar emblemático do presente que nos adivinham.
Mas claro que é nessa estrita contemporaneidade dos outros, por nós desprezada ao ponto de lhes negarmos os demais tempos, que reside a nossa identidade, por contraposição, baseada numa experiência exclusiva que ainda perturba, mas igualmente vicia. Que funciona como critério da eleição dos "happy few" a quem damos dela notícia; os quais, sendo a nossa roda íntima, são ainda construção de nós.
Beijinho.

Júlia disse...

Não sei se será negar-lhes os demais tempos, ou, simplesmente, não lhes termos acesso. Embora saibamos que também hão-de precisar da fita mágica.
Beijinho.