quinta-feira, novembro 23, 2006

Cheguei a um ponto de não precisar copiar o movimento porque as mãos, mais a direita, certas, comandadas pela graça de um deus que me tinha o tamanho da catequese e daquele momento, até ficarem juntas. Isto, às vezes, depois de uma história sobreposta à de um dia antes, mas que nunca me emudecia o oxalá hoje haja história. Porque naquilo que às vezes falha a repetição encaixa.
Lembrei-me disto porque um homem que é só cadeira se levantou um dia destes, a coca-cola na mão pouco certa, estendida por cima do balcão, a recuar centrado num obrigado a bater na língua. E a empregada, senhora de dias bem cumpridos, para outra, diminuiu um bocadinho o olho direito e subiu o ombro esquerdo, ao que a outra, um estalido de quando a língua deixa o céu da boca de repente, os olhos a encostarem-se ao chão, que é aquilo a que se encostam quando qualquer coisa. Quase me ia a mão direita a escorregar, certa, direitinha, mas eu a tempo. Porque ainda uma teimosia de sacudir o deus que me entranharam.
Mas falava-te era do decalque da história, das frases que nos disseram, que dissemos, que ficam num ritmo de entretanto, quase tudo a mexer-nos num agora que deixa de o ser porque todo com os espaços cheios do que se tem sido.
Mas foi-me a mão na mesma e acabaram as duas juntas porque nos entranharam para o podermos culpar quando é altura disso.

quarta-feira, novembro 01, 2006

É que as coisas nunca mais são as mesmas. Nunca mais. Por muito que se procure ajeitá-lo, o vestido já está fora de moda, compreendes? E por muito que tente, aquela nódoa de nada não sai. E os olhos caem-me sempre nela sem querer. Apuro-os, fecho-os, portanto, a ver se vejo como antes, a ver se me vejo como antes, mas a manchazinha a alastrar cada vez mais, a cobrir-me toda. Apetece guardar depressa o vestido. Desistir de o usar, de o ver sequer. É que as coisas nunca mais são as mesmas. Ainda aliso o cabelo, ponho o melhor sorriso e abro a porta. Ainda penso numa frase antiga que surtia efeito... como é que era? Aquela que se multiplicava quase sempre no mesmo diálogo. Que trazia com segurança os mesmos gestos familiares. Uma espécie de senha. Mas calo-me, calamo-nos, a pressentir que nos traímos em palavras, a perceber que escorregámos para fora das sílabas do que diríamos se não estivéssemos tão aqui. Se eu de antes não fosse também de agora. Se não tivesse havido entretanto. Se conseguisse a pureza de viver sem recordar. Sem saber sempre o fim. É que sei quase sempre o fim. Mas procuro, na voz que regressou, a voz de sempre. E só, às vezes, certas palavras. O presente a desvanecer-nos. E eu a ver se acerto, desta feita. Se digo tudo, se digo tudo bem. Se faço exactamente o que se espera. O que teria feito. É que a culpa é sempre minha. Atrapalho-me. Balbucio disparates. A mão a mal esconder a nódoa. A ver se me imito totalmente, se acompanho os passos que se aproximam, que se hão-de afastar depois. Mas eu em silêncio, a assaltar as palavras, a tentar ouvir um estalido, a ver se consigo a combinação perfeita. Eu a ler-me nos olhos que me lêem, a mancha a inundar-me. Eu sempre a pedir Não vás... com outras letras.

sexta-feira, outubro 06, 2006

Como ficava sempre a ser só um com a televisão à hora do telejornal, nunca me dei conta disso. Por mim, não podia mais que movimentos quase nada, a peúga a gritar-me ser puxada para cima ficava já a demasiada distância, porque era só a curva do tronco, ainda a meio, e sossega!
Não me dei conta porque nunca o vi fora dela àquela hora. Só agora o sei. Devo ter sido isso, quase toda um sossego ao lado de um corpo grande, com um bater ritmado de dedos em cima da mesa, mas coisa que agora me parece miudinha, quase desejável. Julgo ter sido, como dizias. Ao fundo, os olhos do homem fixavam-se em mim, não no resto do sofá, enquanto me andava a cabeça em torradas, na minha avó está bem assim, o leite? e na meteorologia a demorar-se. E já para ser outra que não a de hoje.
A peúga numa comichão que não há mas parece, a perna a pôr-se em linha recta, um estalido traidor do joelho, sossega!
Talvez não se consiga ser por um pode dar um jeitinho? num autocarro só gente e nós que até o dávamos, mas o espaço que não há e alguém a mandar-nos não ser mais que um corpo posto. Digo dentro de nós, o lábio ansioso por o dedo lhe chegar à frente, sossega. Digo partes dentro de nós. Por já não se querer torradas, leite e está bem assim?
E há, sei que há quem tenha torradas mesmo antes do estado do tempo, mesmo antes de o homem engravatado deixar de olhar para o sofá.

domingo, setembro 24, 2006

E temos de nos vestir de nós, à pressa, a roupa desbotada de todos os dias. A roupa que mal nos pertence, como uma farda incómoda. E a verdade é que, às vezes, mal me lembro de mim. Recito-me de cor como uma melopeia, sem me ouvir. Vou-me desvanecendo pelo caminho. Deixo o sorriso ali, certos gestos mais além, uma canção de que gostava perdida numa gaveta. Esqueço-me de me procurar. Esqueço-me. Deixo-me em casa. Deixo-me em qualquer lado, como um guarda-chuva. E nunca sei que responder quando me perguntam o que é feito de mim. O que é feito de todos nós? O que é feito do que somos feitos?
Dizia-te que voltei, no outro dia. Que achava que sim. De uma longa migração no estrangeiro do que mais sou. E, às vezes, queria mesmo que sim. Queria virar-me subitamente e ver-me lá, como antes. E chamo muitas vezes por mim. Pela que fui. Ou pela que julgo ter sido. Mas mais vezes pela que não consegui ser. Pela pessoa que sei que seria. Toda a gente era para ser outra, como se sabe.
De qualquer modo, se me vires, por exemplo, numa carta por enviar que deixei dobrada num livro que te tenha emprestado, devolve-me. Alisa os vincos e os cantos dobrados (sabes como detesto cantos dobrados) e devolve-me. Tenho-me feito muita falta.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Como quando às vezes se dorme, de um dormir de se estar sem membros, sem corpo, sem nada que nos pertença, os olhos em linha, de pálpebras subidas sem vacilar. Nós extraviados, como dizias.
Eu extraviada, coisa que às vezes até dura, mas se alguém ficas?, a interromper-me, volto num tempo que nem dá para contar, uma espécie de toque incómodo não sei bem onde, porque o regresso ao que somos levanta sempre o queixo um bocadinho e, sem voz, bate-nos com um o que é? perante o nosso espanto de voltarmos.
Mas às vezes dura, não é mesmo nada, nem outras vidas, nem outros olhos a desviarem-se a medo, nem outras angústias. Só os olhos num ponto mínimo, penduradinhos, sem desvios, como ficam para sempre nas fotografias. Só se sai, mais nada.
Depois o ficas? e o queixo de o que é? como se não devêssemos ficar espantados de voltarmos, como se o levantar-me para não ficar devesse ser natural, uma transposição simples.
Não, não, mentia, não sei se o ponto é mínimo, não o vejo, só fico assim, não é mesmo nada, nem outras vidas, nem outras angústias, nem outras solidões. Ficas?

sábado, agosto 26, 2006

Primeiro, é só o corpo que regressa nos gestos mecânicos. Abre as portas na direcção certa. Acende as luzes de cor. Contorna os objectos. Depois, pousamos também lentamente em nós. E, no hall, a memória começa a espreitar da bagagem. Depois, voltamos a passar a vida a esbarrar connosco. Subitamente, olhamos, e lá estamos. Inteiros. Quando viajamos, temos sempre a ilusão de que regressamos diferentes, de que somos (ou “estamos”, como nos dizem) outros (há anos que sonho “estar outra”...). Mas quando volto a casa, habituo-me instantaneamente à minha claridade, à pronúncia difícil do que sempre fui. Não deve ser mau sairmos de nós, partir sem nos levar ou trazer na mala. Extraviarmo-nos. Perdia já todos os meus pertences, sobretudo a memória, que é o que, irremediavelmente, mais nos pertence, a que o sol nos cola à pele na praia onde fomos de férias “para esquecer”. E quando o Outono assoma no arrepio da tarde, apetece-me ser personagem de romance de cordel: aninhar-me num cesto e deixar-me à porta de alguém, um bilhete na dobra da manta: “Cuida de mim”.

sexta-feira, agosto 11, 2006

Que fosse à velocidade com que me passa uma noite de insónias. Só isso, que quando voltasse fosse assim, devagar, a pôr os pés no chão a medo. Achas que é possível?
A voz distinta e rouca do abandono vem direitinha, tal qual está quando a empurramos como quem afasta migalhas na toalha, os dedos a repetirem-se, a ver se um espaço sem chegadas abruptas do que já foi, porque apenas quase tudo se toma amargo, como dizias.
Mas o que te queria contar era que hoje ia com passos de ritmo de estou cheia de pressa, a contornar carros, gente, sacos, tudo perfeito, no encaixe certo, quando me pára um senhor a travar o passo já pensado, de lábios esticadinhos para os lados.
Dizia-te sem estremecer, sem ser de repente. Achas que é possível? Que a memória pode vir a arrastar, mas sem fazer ranger as tábuas?
E fiz-lhe o mesmo. Ao senhor. E deu-me jeito. Porque tinha já o olho a fugir para o fim da rua e, quando começo assim, desfaço tudo, fico convicta de não tenho pressa, a carregar as palavras que se sabe que existem, de que falavas, como se estivesse a escrever e a alma cada vez mais lá. Assim, sempre o fim da pressa mais ao longe, com o sorriso pelo meio.
Mas é de repente, quando se chega, quando se pára sem ninguém à frente. Vozes, cheiros. Abrupta. Intacta. Como se não consegue ouvir as palavras. A bater os pés, a memória.
Por isso, deu-me jeito.

quinta-feira, agosto 03, 2006

Às voltas, às voltas, a remexer as palavras, a ver se as dissolvo num texto. Que o café aprende-se a tomar amargo (aprende-se a tomar quase tudo amargo, talvez), mas os textos sabem-me sempre mal. Por mais palavras que lhes deite. Se calhar, é porque, mesmo que se tenha mil cuidados, destingimo-nos no que escrevemos. Detestaria pensar que isso é verdade, e que cada texto nos desbota a alma. Mas, como sabes, tenho sempre dificuldade em ouvir-me. Em ouvir. Em fechar as torneiras que abafam as palavras que eu sei que existem. Em tirar as luvas de borracha e deixar a loiça suja. Por uma palavra intacta. Por uma melodia completa. Até porque tenho a certeza de que é possível ouvir por dentro. Como, há dias, uma voz cambaleante gritava às gaivotas na avenida marginal, gritava-lhes pedacinhos de pão, acho que à procura de um interlocutor de asas. À mais afoita, lançou-lhe com o pão um “Estás triste? Os teus pais deixaram-te?”. E garanto-te que ouvi. Tive de fechar a complacência dos sorrisos de água dos circunstantes. Mas ouvi
(ou ouvi-me): a voz distinta e rouca do abandono - por entre os salpicos do detergente de loiça.

domingo, julho 23, 2006

Teimo sempre que o açúcar não bem dissolvido e deixo os dedos colados à colher, às voltas, às voltas, como se uma diversão qualquer. Há coisa de dias, à distância comedida que se quer entre quase desconhecidos, decerto com o lábio inferior a distanciar-se a medo do de cima, se mantenho as coisas assim, é por os ver mais animados. Empurrei os olhos coisa de alguns palmos à direita e uma marca de transpiração de dedos de uma resignação amordaçada na mesa.
Retomei o açúcar e, entre uma e outra volta, arrastado, qualquer dia faço-o mesmo. Como que de dedo em riste contra a rouquidão, sabes? A auto-assistir-se, dirias. A sair-lhe ela e não a parte malhada de muitos outros. Visita de hora de a minha tia de luvas de borracha e detergente de loiça, a ouvir o que a torneira deixa.
Regresso-me, como se uma diversão qualquer, porque a minha vontade de então deixe-se dos outros, de ser o que eles dizem que é começou a tremer de fraqueza, a ver manchas brancas, a desfalecer. Por isso e porque talvez nem sempre haja quem fale em voz baixa, o suficiente para nos escutarmos, como dizias. O açúcar já todo só café.
Não, talvez até não por isso, mas porque a gritaria dos outros, a mão que não é nossa a moldar-nos a forma seja modo de nós de punho cerrado para nos sermos. Uma espécie de rascunhem, que hei-de passar como quiser.
Mas eu às voltas, às voltas.

terça-feira, julho 18, 2006

“Deixa de te escutar”. Levei anos a ouvir este safanão. E a tecer laboriosamente a minha surdez. Porque os outros é que sabiam, eu não tinha razão. Nem me conhecia. Vivia comigo há tão pouco tempo, ainda estranhava a minha companhia (ainda estranho, confesso, ainda me olho de soslaio, como a uma velha companheira de quarto que não é de fiar). Eles é que sabiam, pois. Talvez ainda saibam, não sei. Como também não sei o que nos enrouquece. Suponho que, curiosamente, sejam os gritos dos outros. As perguntas que arremessam, como dizias. Deixei de me escutar, portanto. Deixei que me gizassem. Fui passando a tinta o rascunho. Outra forma da assistência intermitente de que falavas. De auto-assistência , talvez. De nos vermos ao longe, como se não estivéssemos em nós. Talvez, um dia, alguém me passe um corrector e me restitua à forma original. Ou me obrigue a fazer as pazes com a companheira de quarto, a dar-lhe dois beijinhos, de sorriso contrafeito. Talvez alguém fale para ouvir, não para se ouvir. Talvez alguém me peça que fale - mas não apenas para poder retorquir. Talvez alguém fale em voz baixa. O suficiente para me escutar.

sábado, julho 01, 2006

Não bem zanga, mas aquela irritação miudinha no rapar do prato por o marido de pescoço firme, a fazer ângulo de 45º com o tampo da mesa. E, se alguma pergunta, a teimosia do pescoço a fazer braço-de-ferro com os olhos em frente, pesados de um nervosismo que fica já a meio passo da desistência.
Por mim, preocupava-me em empurrar colheres até ver o fundo do prato.
Mas dizia que, se alguma pergunta, o pescoço sempre em posição e a resposta já no seu destino. Por vezes, olhos de ir riscando os dias, como dizias, sempre na mira da sopa, e era ele próprio quem arremessava a pergunta. E palavra que, mesmo que a resposta do outro lado fosse daquelas de só abanar a cabeça e deixar pálpebras a meio ou fazer subir ombros, continuava o rabisco da conversa sem falhas, a contornar os qualquer dia furas o prato com os olhos.
Cumpria o meu papel de assistente intermitente. Cumpro. Por isso acabo por fugir para histórias de quem esteve quase lá.
Lucidez demasiado pesada? Digo o comer de olhos presos ao prato.
Se cada um a levar-se aos outros, a trazer-se a si próprio, certo, certo do que diz (ouve?), sem desentendimentos a que deitar mão, sem irritações miudinhas, sem qualquer dia furas o prato com os olhos, talvez não houvesse que criar. Tudo a ser o que é. Talvez por isso o ângulo, os muros de si mesmo difíceis de saltar, de que falas, sempre seguros.
E eu que raro vejo o fundo do prato.

domingo, junho 25, 2006

Ainda pensei em criar uma história, a fingir que não sou eu, com as palavras bem medidas, cheia de frases-isto-não-tem-absolutamente-nada-a-ver-comigo. Mas a verdade é que o que escrevemos fica sempre tão longe de nós próprios, que tanto faz. Se calhar, quem anda metido consigo dificilmente consegue saltar os muros de si mesmo, esgueirar-se por qualquer palavra aberta. Se calhar, resta-nos apenas deixar um grito nas paredes sujas que todos têm dentro – Fulano de Tal esteve aqui! – e ir riscando os dias. Ou escrever como quem lima em vão grades invisíveis. Isto porque falávamos da (in)comunicação, das vozes que se cruzam, das que irrompem do não ser em qualquer esplanada, em qualquer fim de tarde, porque tudo o que existiu existe - ou tudo o que se queria que existisse existe. Ou falávamos, talvez, do silêncio, de como as palavras nunca nos levam ou nos trazem os outros, de como naufragam no ar à beira dos olhos.

quinta-feira, maio 25, 2006

A tarde de ontem foi-me de horas escorregadias, a deixar-me pernas aflitas de passos a mais a fazer peso numa cadeira de esplanada e olhos cheios daquela angústia que nos vem de não compreendermos certas partes. Ao contrário de hoje, um dia cheio de medidas.
Dizia-te que ontem, coisa de três, quatro passos ao meu lado, outras duas cadeiras – uma com um corpo e uma sem nada. Um corpo de cara já pouco lisa, de olhos amarrados à altura de uma cabeça que não havia. E, pouco depois, aparece um posso?, não percebi de onde, já de braço estendido convicto da resposta. Mas que não, que não podia, que a cadeira ocupada. E os olhos, naquele meio ponto que deve ficar entre a zanga e a tolerância, retomaram o fio.
Falavas-me de uma dança com fantasmas? Talvez isso.
A sério que eu com a cabeça em encontrões de indecisões, que, se toda eu lucidez, me tinha levantado e deitado ao de braço estendido convicto da resposta que lata! Tirar lugar a quem já estava! Mas já as mãos nos braços da cadeira e chegou-me a parte da preocupação com o entretenimento da cabeça dos outros em relação a mim. Deixei-me.
Horas de o sol já gasto, e o da cara pouco lisa de pé, a afastar um pouco a outra cadeira com mãos todas delicadeza. E via-se-lhe, entre as dobras marcadas da cara, a tarde bem pintada.
Mas deixei-me.
Se falavam? Era capaz de te jurar que ouvi murmúrios. Uma tarde de horas escorregadias.
E deve ter guardado o dia. De B A, mas bem pintado.

sábado, maio 20, 2006

Nada a fazer. Os fantasmas das palavras e das pessoas convivem-nos, assombram-nos as horas e não há qualquer fita que as isole de nós - ou que nos isole delas. Ou talvez não queiramos, de facto, ser isolados, talvez desejemos, sim, essa dança com o que foi, isto é, com o que julgamos ter sido. De forma que é fazer do vento música. Vais dizer-me que é triste fazer de B A e tens razão. Mas mais triste é matar o que já não é só porque não é. Ou porque não é o que se esperava (nada nunca é o que se espera – acho que já mo disseste. E só o desejo é perfeito, aprendo-o com todos os dias esborratados que me apresso a destruir. Com todos os dias por ser). Também te disseram, suponho, para matar o que já morreu, viver o presente e tal. Ou pensar no futuro e tal. Mas suspeito que dançar com os fantasmas é a única forma de morrerem de morte natural, como, de resto, todos os domingos (é impressão minha ou a memória chuvisca aos domingos?). É fazer do vento música, portanto. Mesmo que a morte do que foi também seja a do que fomos. Mesmo que, nessas noites sem isolamento, o passado acabe, invariavelmente, por nos pisar.

domingo, maio 14, 2006

Não te escrevi ontem porque uma noite de ar barulhento pelas fendas da janela e, com isso, um serão de vozes que já não há, de eu a vedar-lhes a entrada, mas nada. Nada mesmo. Todas cá, aos empurrões.
Não muito bem guardado, sabes, o passado.
De modo que hei-de arranjar-lhes daquela fitinha esponjosa. Não lhe sei o nome certo, tenho de andar sempre a vasculhar palavras. Mas hei-de desenrascar-me, arranje-me fita de não entrar vento, por favor, daquela de emudecer o assobio. E que os há, há, os empregados que esbanjam movimentos que não acompanho e pesados de paciência, de revirarem até aqui tem. O sorriso de agrado e eu a ver-lhe, mesmo, mesmo por detrás, a chatice da arrumação. Ele a tentar uma forma de ser só por fora e eu, que pouco levanto os olhos dos balcões, dessa vez, a teimar-lhe que o conduzir-se assim certinho, com tudo contado, não era pressa, mas forma de poder deitar-se e dormir, todo arrumadinho.
Mas falavas de não se andar de olhos tão para dentro, julgo. De haver só uma voz e do grito e de a memória andar atada a uma consciência de só nós.
Se gosto do sono de pessoas de aqui tem? Se mo emprestassem, eu de mão já à espera, deixava as fendas todas destapadas, que nunca deixasse de ser assíduo.
Mas o que te perguntava era se o passado era domingo. É? Carregado de um tempo esticado e nós a querermos que fique mas que assim não.

terça-feira, maio 09, 2006

E o melhor é fechar as portas, sempre te disse isso. É que, depois de entrarem, as pessoas não saem. Passamos o tempo a esbarrar com elas na memória, a sacudi-las das páginas dos livros, a evitar que nos pousem nas palavras. Depois é tarde. E fala-se a uma voz, na mesma. Fala-se sempre a uma voz. Tem é de se gritar, às vezes. Por isso, é que só tu. Mas não era isso que vinha dizer. Queria pedir-te para arrumares melhor as horas, guardar meticulosamente o passado, sem vincos, e lembrar que sempre ajuda saber de cor o dia seguinte e chegar a tempo à vida. Foi o que sempre me disseram. Nunca me explicaram foi como alcançar a calma sem passar pela ilusão - e isso também não sei dizer. Julgo que terá a ver com o avesso. Mas estou convencida de que alguém sabe. E provavelmente até há uma forma de se ser só por fora. Ou de não se ser só eu.

domingo, abril 30, 2006

Que me deixasse disso, que as marionetas dos dias decalcados, a puxar corpos cheios de costumes são coisas minhas, que o tempo lisinho é coisa que não há por fora. Que isso meu. Disse-me isso.
Está hoje um dia repetido.
E desmanchou-se logo. E eu a dar-lhe atenção, como se os bocados de nós, aqueles que nos empurram à parede, puxam pelo colarinho, ameaçam com uma mão cheia de veias que a pele não tem força para baixar e atiram um não é nada disso!, devessem ser ouvidos. Devem? Talvez, mas há a minha teimosia de saber o pouco tempo que ficam. Desmanchou-se logo, porque já a porta para trás, a decisão do café e a rua corcunda de tudo nos seus lugares, de uma urgência de tudo a postos.
Se se mantivesse inteiro, ter-me-ia explicado, talvez, que o que se não diz, que o vermo-nos o avesso, que o remoinho das palavras de mão na boca são desassossegos da escrita.
Que me deixasse disso.
Mas dizia-te que está um dia vulgar, as casas encaixadas, as pessoas ao mesmo ritmo e, se for altura de loiça na máquina, há-de descer o tronco de mão atrás. Desmanchou-se.
Se te aparecer um bocado desses, com veias de fúria de só é dentro de ti!, chega-lhe o ouvido aí um centímetro de tempo, deixa-o estar. Sempre é um aconchego a um instante como se houvesse uma condenação à calma. À ilusão.

sábado, abril 29, 2006

Da próxima vez, escrevo a sério. Escrevo mesmo.Um texto a transbordar de palavras inteiras. Sem que a vida me interrompa, é que estou farta de tentar colar todos os pedaços do que não digo sempre que uma porta me estilhaça o silêncio. De modo que não sei se chego desta vez. Como nunca, de resto. É por isso que a tal senhora não te ouviria. A ilusão é estridente. Ou a lucidez, não sei bem. Como todas as vozes de nós, os néons privados e obsessivos dos dias em claro. Não sei se te disse que quase prefiro as noites. Mesmo o tumulto vazio dessas horas, que nunca transborda. Uma espécie de sangria adiada da alma, uma coisa assim. O preço da invivência, digo-me (do viver para dentro, devia vir nos bons dicionários). Bem conheço o chinfrim de todas as palavras não ditas. Será que a tal senhora adormece melhor? Quem espera convictamente quer chegar à margem clara da manhã, garanto-te, quase com a mesma certeza com que te afianço que as portas espezinham as palavras. E com que tento dizer que gostaria era de me libertar deste guizo interior que me sufoca. É que nem sempre gosto de dar por mim.

terça-feira, abril 25, 2006

Um verbo sozinho. Esperar. Tens mesmo razão.
E do que ouvi vinha isso, esse empenho ao vazio. Mesmo entre o agudo dos pires e das chávenas a deixarem-se cair na máquina de as limpar até ao íntimo e o senhor Artur (por meio da história) aqui têm tudo em condições, bem servidos, com uma descida de tronco de mão atrás e à velocidade com que me passam as noites de não dormir. Mas a sério que me chegou esse empenho de que falavas (mas não o sabia dizer) mesmo entre a forma irritante com que nos entra o som de pratos a baterem depois de insónias.
Mas dizias que o regresso traz outro. E se lhe batesse à porta? À porta da senhora que me ficou entre os trocos? Digo eu, eu bater-lhe à porta. Que quando voltar é outro, que ponha só um prato, que os dias assim, com esforços por encolhê-los ao máximo para passarem a ser outros, são forma de se passar pela vida sem fazer barulho. Ou deixá-la a tecer farrapos de nada, de que falavas, no seu tecido? É forma de se estar.
Um verbo sozinho, de facto.
Eu bater-lhe à porta, dizia. Há ideias que nos vêm ao mesmo tempo que as enxotamos. Eu. Como se fosse costume fazer barulho. Às vezes, quando a lucidez não arreda pé, quando a aflição do silêncio, como dizias, tenho a certeza de que hei-de passar assim. Que, por mim, tenho o tempo todo bem polido, lisinho, direitinho. Igual. Morto, dirias, talvez. Hás-de ver que não faço barulho. Palavra. Há pessoas que vêm sem guizo.

Também nunca sei se o mundo nos adormece ou acorda a memória. O mundo é tudo o que é outro, claro. Nunca sei se é um voo de mim ou se me deixa mais comigo, emaranhada no meu próprio ninho. Mas também te digo que as palavras dos outros são normalmente ditas com a minha voz. Pode parecer estranho, mas é verdade, como é verdade que quase me aflige o silêncio do frigorífico. Os silêncios, em geral. E os ponteiros parados também são palavras quietas. Se bem que, penso-o muitas vezes, os corpos sem alma são de confiança. Mais tarde ou mais cedo, o frigorífico sempre diz alguma coisa. E, quando partir, há-de, inevitavelmente, regressar, ou outro por ele (é sempre outro que regressa, como se sabe), para retomar a sua voz na casa. Mas, como dizia, porque era isto que dizia, esperar é um verbo triste, um verbo sozinho. A vida empenhada ao vazio. E se também teço os dias para desfazê-los depois, é porque quero, insidiosamente, matar o Tempo. Mas suponho que toda a gente viva em estado de esperança, mais ou menos dissimulada, que em cada um haja farrapos de nada que teimosamente entrelaça num tecido ingénuo. É que, se repararmos bem, o zumbido do frigorífico parece mesmo o mar na praia de Ítaca, não é?

sexta-feira, abril 21, 2006

Escrevo-te porque uma história de manhã, logo com o café. Por isso e porque uma tarde cheia de barulhinhos a pesarem-me, movimentos arrastados, cansados, ao ritmo com que me escorregam os ponteiros.
Uma história que ouvi ao senhor Artur. Não que ma tenha contado a mim, ando sempre com os olhos demasiado embrulhados no chão, nas chávenas, nos balcões, na carteira, para me andarem a despejar histórias. Dizia que há histórias assim. Esperas calmas e permanentes. Que um dia a despedida com o regresso mesmo encostadinho, despedida de vais ver que passa depressa, daqui a nada estou cá. E que até hoje. E que a senhora… (ficou-me o nome entre os trocos) com a mesa pronta. Histórias assim, acreditas? Esperas calmas e permanentes? Que por volta das sete dois pratos e os talheres todos.
E anda-me a tarde cheia de barulhinhos. O frigorífico, a espaços teimosos, murmura-me o incómodo de uma vida cheia de costumes. Palavra que é difícil aguentá-lo. Aguentar o frigorífico, pássaros de fim de tarde e histórias assim. Acreditas?