sábado, agosto 26, 2006

Primeiro, é só o corpo que regressa nos gestos mecânicos. Abre as portas na direcção certa. Acende as luzes de cor. Contorna os objectos. Depois, pousamos também lentamente em nós. E, no hall, a memória começa a espreitar da bagagem. Depois, voltamos a passar a vida a esbarrar connosco. Subitamente, olhamos, e lá estamos. Inteiros. Quando viajamos, temos sempre a ilusão de que regressamos diferentes, de que somos (ou “estamos”, como nos dizem) outros (há anos que sonho “estar outra”...). Mas quando volto a casa, habituo-me instantaneamente à minha claridade, à pronúncia difícil do que sempre fui. Não deve ser mau sairmos de nós, partir sem nos levar ou trazer na mala. Extraviarmo-nos. Perdia já todos os meus pertences, sobretudo a memória, que é o que, irremediavelmente, mais nos pertence, a que o sol nos cola à pele na praia onde fomos de férias “para esquecer”. E quando o Outono assoma no arrepio da tarde, apetece-me ser personagem de romance de cordel: aninhar-me num cesto e deixar-me à porta de alguém, um bilhete na dobra da manta: “Cuida de mim”.

14 comentários:

nuno disse...

"cuida de mim"... não é essa a expressão mais angustiante, mas mais sincera, da nossa fragilidade...?

Margarida disse...

Obrigada pelo comentário, Romã. Onde havia eu de pôr o bilhete? E, mesmo aí, corre o risco de se perder...


Obrigada pelo comentário, Nuno. Concordo contigo, naturalmente. E como tendemos a ocultar as fragilidades, esse "bilhete"costuma ser rapidamente escondido na manta. Mas a verdade é que temos (quase)todos essas palavras escritas debaixo da pele...

Mito disse...

Belo movimento de marés entre o que quisemos ser e o que quase fomos ou entre o que realmente somos e o horror de o sermos...

aya disse...

Fiquei com um nó na garganta...

Beijo muito grande

Margarida disse...

Disseste bem, Mito. O trazermo-nos sempre connosco pode ser angustiante, é que trazemos o que somos, o que queíamos ser, o que fomos, o que sabemos que não seremos, eu sei lá...

Obrigada, Aya, reconheço esse nó na garganta - já o senti muitas vezes ao ler-te e ao "ver-te".
Deixo-te agora outro nó - em forma de abraço de longe.

João Miguel Henriques disse...

obrigado por teres passado nos quartos escuros. e já agora esclareço: nunca testemunhei um giosz a apanhar uma estrela.

Fatma disse...

O teu texto encerra uma melancolia que se entranha na essencia humana. Fez-me pensar numa eterna luta entre o ser e não ser, o ir e o voltar.O mito da mudança que, se alguma vez se concretizar, deixa de o ser... E o cansaço que se vai renovando e tb deixa de o ser... Fez-me pensar...Bjos Fatima.

Margarida disse...

Bem, Perdido no Escuro, não duvido do esclarecimento, mas acho que tens andado por aí a apanhar palavras, e é sabido que elas também têm luz própria...
Obrigada pela retribuição.

"Íntimos e estrangeiros", também é isso, Marta. E os regressos, ainda que doam, por vezes, permitem que nos olhemos por inteiro - e ninguém pode fugir de si, o preço desse bilhete é alto, mais vale, se calhar, fazer as pazes connosco. Beijinho grande.

Sermo-nos não sendo, bem sei, é desejo de muitos, Meg. E dos muitos que cada um "pessoanamente" sempre é. São essas viagens cá dentro que nos fazem, talvez ir ficando. Obrigada pela partilha. Beijinhos.

Pois é, Fatma, aí é que está o problema - pensar. É disso que é também difícil fugir. Resta-nos o equilíbrio difícil entre ir e voltar. Seremos como Campos: "Entre parar e andar,/Entre ficar e ir,/ Hei-de ser quem Vai chegar/Para ser quem quer partir.//Viver é não conseguir." Beijinho grande.

Obrigada por sentires o que escrevi com as tuas palavras, Rita.
Provavelmente o amor tem esse sortilégio de nos levar e/ou de nos trazer até nós. Vou ler-te com atenção, a ver se descubro.

Quarto do Tempo disse...

Gostei muito Margarida. Essa forma simples de falar do nosso eu entre os outros é particularmente bela.
Obrigado.

Margarida disse...

"O nosso eu entre os outros". De facto, é quase sempre sobre isso que acabamos todos por falar, Paulo. Obrigada pelas palavras.

l disse...

cada ano passa sinto essa mesma sensação, sensação essa que nunca fui capaz de descrever tão bem como tu o fizeste, e cada ano que passa essa mesma sensação de um corpo que retorna ou de um Outono de desamparo é sempre mais intensa, mais forte e às vezes só me apetece ficar, deixar-me ficar, nem fora nem dentro de mim...
um beijo aquecido ao ainda sol *

Margarida disse...

A aproximação do Outono deve ser propícia a esse desejo de migração. Provavelmente, são as aves em nós que ficam inquietas.
Obrigada pelo comentário, Agripina, e pela companhia enquanto estamos pousadas a alisar as asas.
Outro beijo com sol dentro.

Margarida disse...

Obrigada pelo comentário, J.
Regresso é uma das minhas palavras-obsessão, se calhar.

Fiquei curiosa: que filme?

Margarida disse...

Confesso que só ouvi falar do filme. Vou procurar vê-lo. Talvez descubra como (não) se regressa.