quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Como se, de repente, uma porta. Um estrondo súbito. E a vida se incendiasse sem remédio. Mas não era isto. Não é bem isto que digo. E a poesia?, perguntas. Um dia. Um dia destes. Dizem que é quando menos se espera. Esperarei menos. Dizem que é quando as palavras já não são nossas - e a verdade é que ainda me vejo no raio dos poemas. No raio de todas as palavras que escrevo. E isso é insuportável. Centenas, milhares de espelhos onde me multiplico. Ninguém aguenta. E depois o tempo. A vida a sobrepor-se à vontade. Centenas, milhares de vozes envolvem a minha. É impossível ouvir seja o que for. Mas acredito que a tal melodia de que fala o Pessanha deslize “só, incessante” na noite. Acredito que a oiçam. Acredito mesmo que a ouvi. Ao longe. Como quase tudo o que (nos) acontece. E cansa-me escrever com cuidado. Como um criminoso. Em bicos de pés. De luvas. Para que não fiquem vestígios de mim. Como me cansaria choramingar letra a letra aquilo que, de facto, me interessa dizer, falar da vacuidade da vida, do amor, das pessoas e dos sentimentos em geral. De quase tudo. Ia a dizer de tudo, mas isso era capaz de ferir as almas sensíveis - e sabes como detesto ferir as almas sensíveis. Ainda tentariam convencer-me do contrário. Que a vida e não sei quê. E é uma bela palavra, vacuidade. Encontro-a sempre na cinza de todos os incêndios. E do outro lado de todas as portas. Mas não é bem isto que digo.

17 comentários:

Photoptero disse...

"E do outro lado de todas as portas." é isto. aqui houve tempo para que todas as portas se abrissem por dentro das palavras.

Margarida disse...

Obrigada Photoptero. Bem gostava que todas as portas se abrissem, como dizes, por dentro das palavras. Resta-nos ir esgotando as chaves, suponho :)

kelly disse...

às vezes não há lugar a chaves, havendo como que um misterioso código que não sabemos se temos ou não, dentro de nós.

________________ /// Por Luci Couto /// ________________ disse...

(centenas, milhares de espelhos onde me multiplico)...lindo isso, vc escreve muito bem...

q bom q gostaste do blog...agora q descobri o seu, virei aqui abrir algumas portas,rs...

bj

Anónimo disse...

"E cansa-me escrever com cuidado." Com o sentimento de quem comete um crime, é mesmo isso Margarida. Esta tentação nos dedos, a vontade de partir os espelhos e perder o reflexo. Um dia. Será. Um beijo.

Margarida disse...

Obrigada, Raquel, por estares atenta ao código interior das palavras.Beijinho.

Não posso dizer que as portas estão sempre abertas, Luci, mas quem tem "kaleidoscopic eyes" vê muito bem para lá delas. Mais um beijinho.

E a certeza, Marta, de que as impressões digitais de quem escreve nunca se apagam. Não tinha pensado nisso, mas é isso - a vontade de perder o reflexo. Quando quiseres escrever por mim, estás à vontade, dou-te o username e a palavra passe e ninguém dá por nada :) E mais outro beijinho.

José Lopes Coutinho disse...

Desencanto? A vacuidade na cinza dos incêndios indica que algo aí existia antes, algo que perdemos e que restou em vazio. Do outro lado de todas as portas, talvez só traia o desânimo de abrirmos portas por pensarmos que nada iremos encontrar.E sabemos que há alturas em que a "vida" sufoca as palavras. Um bj

Margarida disse...

Sabe bem ser "analisada", é um tudo nada embaraçoso, mas até gosto bastante do meu próprio remédio...

Desencanto, claro. Os incêndios têm, de facto, este lado bom - havia algo para arder :) Também lembram que tudo é inflamável, o
que tem menos piada...
Desânimo, claro, sobretudo quando se sabe sempre o que está (ou não está) do lado de lá das portas. Ou se julga saber, que é o mesmo.
E é verdade, a "vida" sufoca mesmo as palavras. E faz-me pena vê-las morrer, mas...
Obrigada pelo comentário. Bj

José Lopes Coutinho disse...

A análise diz muito do analista, andamos por aí a semear palavras que estão rascunhadas em volta do nosso umbigo. Mas é sempre bom encontrar um bom texto como o teu, que suscita interpretações e devaneios.

un dress disse...

" e de tudo os espelhos são a invenção mais impura"

( H Helder)

Margarida disse...

Devo confessar, José Eduardo, que são os comentários, as "interpretações" e "os devaneios" que, se calhar, tornam o texto "bom" - ou dão essa ilusão. Os comentários (alguns, pelo menos) funcionam como uma espécie de sublinhados, e um texto sublinhado é diferente, é mais "caleidoscópico", talvez...

Bem, Un Dress, nada como aparecer acompanhada de um padrinho - e escolheste um padrinho de vulto...
Bem-vinda à blogosfera!

un dress disse...

pra já ignoro quem são os padrinhos :))

(ainda bem então que são

de vultOOO!)

é que cheguei há pouco

...e vou onde gosto...

(vou por onde gosto!)

bom dia-de-sol-hoje

Margarida disse...

Referia-me, un dress, ao Herberto Helder que citaste... Era ele o "padrinho".
Somos duas - também só vou onde gosto...
Um dia de sol para ti também, com ou sem ele.

un dress disse...

com-sol também pra mim!

bom-dia margarida! :)))

________________ /// Por Luci Couto /// ________________ disse...

Olá Margarida, é sempre bom ouvir Beatles! :)

Beijos

mitro disse...

A poesia só acontece, com o despir da alma!

(É por isso que a guardamos em gavetas, até perdermos a vergonha!)

________________ /// Por Luci Couto /// ________________ disse...

Ola Margarida, postou no meu blog recentemente, deixei pra escrever-te depois e acabei esquecendo-me :)

q bom q continuas a visitar meu blog, à ver, ler ou ouvir... à teu gosto...

bj
:)